Jéssica com o caderno de recordações de João Vicente 1

O luto invisível: a dor de uma mãe que perdeu seu filho inspira ação no HMDI

On 05/31/21 11:53 . Updated at 07/07/23 22:41 .

Certidão do Amor Eterno é criada pela equipe de psicologia da maternidade para gerar acolhida e auxiliar puérperas a passarem pelo processo de perda

“Sempre pensamos na maternidade como um lugar de vida, mas, infelizmente, a morte também acontece”, pontua Rafaela Marciano, psicóloga do Hospital e Maternidade Dona Íris (HMDI), ao falar sobre a realidade da unidade de saúde, de alto risco, onde há casos de malformação, doenças cardíacas ou prematuridade extrema, e também óbitos fetais devido a intercorrências maternas. O sofrimento da perda de um bebê é, muitas vezes, incompreendido. “É um luto que a sociedade não reconhece. São comuns frases como ‘você nem é mãe ainda’, ‘nem deu tempo de se apegar’, então essas mulheres acabam sendo silenciadas na sua dor”, comenta a psicóloga.

Logo que acontece o falecimento de um bebê, a equipe multidisciplinar do HMDI oferece à mãe a oportunidade de vê-lo e pegá-lo no colo para se despedir, respeitando o tempo de cada uma. Há casos de mulheres que não querem esse contato no início, e depois mudam de ideia, então foi criada uma ambiência no necrotério com adesivos, um bercinho e cadeiras para esse momento ter o mínimo de acolhimento. A partir de uma história com este fim inesperado, a equipe liderada por Rafaela criou alternativas extras para as mães viverem o luto.

Foi quando surgiu a Certidão do Amor Eterno. Em uma folha de papel, colocam o carimbo do pezinho do bebê com nome e data de nascimento. Além disso, é sugerido à família recolher o máximo de lembranças possíveis. “A equipe abraçou a ideia e faz desenhos, escrevem recados para as mães também”, conta Rafaela, dizendo que a ideia surgiu a partir da história da professora de Geografia Jéssica Martins Piani, que fez uma ‘caixa de lembranças’ com itens do filho João Vicente.

“Explicamos a elas que é importante chorar, o sofrimento faz parte. O bebê foi um filho, ele tem uma história. Ao fazer o acompanhamento com a Jéssica, notamos como as recordações físicas tiveram um impacto importante. Por que não fazer para outras mães também?”, assinala a psicóloga.

Quatro anos depois da perda de seu filho, Jéssica conta que o acompanhamento psicológico, realizado até os dias atuais na maternidade Dona Iris, foi fundamental, e saber que sua história deu origem à Certidão do Amor Eterno é uma honra. “Na terapia consegui compreender o sentimento do luto, me ver primeiro e entender que aquele não era o fim. Sei que muitas mães não têm esse apoio, mas pequenos gestos como essa certidão podem transformar um pouquinho esse sentimento”, discorre.

Certidão do Amor Eterno

Certidão do Amor Eterno 2

A história de Jéssica

Jéssica nunca teve o sonho de ser mãe. Quando se descobriu grávida de João Vicente, passou por um longo período de negação, até que sentiu o filho mexer pela primeira vez, aos três meses de gestação. “Acordei assustada com ele mexendo e aí comecei a entender que realmente tinha um serzinho na minha barriga. Foi esse o início de mudança, quando comecei a pegar amor e carinho”, conta, dizendo que planejou chá de bebê, enxoval e tudo mais que tinha direito.

Na 23ª semana de gestação, no entanto, Dia das Mães de 2017, um susto: Jéssica teve um sangramento e foi até a Emergência do Hospital e Maternidade Dona Iris (HMDI). Ela estava entrando em trabalho de parto e precisaria de medicações para retardar o nascimento de João Vicente. “Fiquei internada por aproximadamente uma semana e meia sob cuidados médicos e quando já não tinha mais sangramento ou dilatação, pedi alta para voltar para em casa. Seguindo as orientações de repouso absoluto e atenção máxima a qualquer anormalidade, o fiz”, discorre a mãe.

Poucos dias depois da alta, Jéssica teve mais um episódio de sangramento e voltou ao HMDI com quatro centímetros de dilatação. Os exames com João Vicente continuavam normais, mas a indicação era que ele continuasse na barriga por mais tempo. Às 25 semanas e 6 dias de gestação, em 29 de maio, um dia depois do aniversário da mãe, o pequeno João nasceu e foi direto para a Unidade de Terapia Intensiva (UTI). “Ali, dentro da UTI, foi quando aconteceu uma explosão de sentimentos. No toque, ao ver que ele notava minha presença, na respiração... o amor foi nascendo”, lembra Jéssica. Prematuro extremo, João Vicente lutou bravamente por sua vida, teve todo o amparo e apoio da mãe, do pai e de toda a família, mas, em 29 de junho, faleceu.

O luto foi extremamente doloroso. Julgada por muitos pelo sentimento inicial, descaracterizada como mãe, Jéssica contou com o apoio da equipe de psicologia do HMDI para aprender a viver essa fase. Uma caixinha de lembranças com fotos, exames, e algumas peças de roupas de João Vicente foi grande aliada neste período, quando ela também começou a escrever sobre o que sentia.

“Estava culpada, impotente, com medo e, aos poucos, percebi que eu renasci com o falecimento do meu filho. Ele me transformou totalmente, mudou meu jeito de ver o mundo, me fez respeitar mais as diferenças e pensar mais no outro. Hoje, meu sentimento é de gratidão. A morte do João foi a vida para mim”, finaliza a mãe.

Jéssica com o caderno de recordações de João Vicente 1

Jéssica com o caderno de recordações de João Vicente 2

Psicóloga Rafaela Marciano e Jéssica Martins Piani

Sapatinho que uma das melhores amigas da Jéssica fez

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